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Estresse crônico e inflamação silenciosa

  • Foto do escritor: Géssica Magalhães
    Géssica Magalhães
  • 18 de out.
  • 3 min de leitura
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A relação entre a mente e o coração vai muito além da simbologia. Há, literalmente, uma ponte bioquímica que conecta os estados emocionais ao funcionamento cardiovascular. A ansiedade crônica, em especial, tem se revelado um fator de risco significativo, e ainda subestimado, para o desenvolvimento de eventos agudos como o infarto do miocárdio.

A medicina contemporânea, apoiada em neurociência e fisiologia cardiovascular, começa a mapear com precisão os caminhos pelos quais a saúde mental influencia o sistema cardiovascular. O que antes era considerado subjetivo ou psicológico, hoje ganha respaldo laboratorial e clínico.


O que é ansiedade crônica?

A ansiedade, em sua forma adaptativa, é uma resposta natural ao perigo. O problema surge quando esse estado se torna crônico, desproporcional e sem resolução emocional. Indivíduos com transtorno de ansiedade vivem em constante estado de alerta, mesmo sem ameaça concreta.

Esse estado permanente de vigilância ativa o sistema nervoso simpático e desencadeia uma série de respostas hormonais e fisiológicas que, com o tempo, danificam o organismo.


A fisiologia do estresse ansioso

Quando o cérebro interpreta uma situação como ameaça, ocorre a ativação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal. Essa ativação provoca a liberação de:

  • Adrenalina e noradrenalina (via medula da adrenal);

  • Cortisol (via córtex adrenal);

  • Aumento da frequência cardíaca, da pressão arterial e da viscosidade sanguínea;

  • Estímulo à agregação plaquetária;

  • Redução do calibre dos vasos por vasoconstrição.


Essas alterações, mantidas cronicamente, aceleram o processo de aterosclerose, elevam o risco de arritmias e predispõem à ruptura de placas ateromatosas, mecanismo central no infarto agudo do miocárdio.

De acordo com a ESC, pacientes com transtornos de ansiedade têm risco aumentado de eventos cardiovasculares em até 30% quando comparados a indivíduos saudáveis emocionalmente.


Marcadores biológicos da ponte mente-coração

Estudos recentes demonstram que pacientes com ansiedade crônica apresentam níveis elevados de:

  • Proteína C reativa ultrassensível (PCR-us);

  • Fibrinogênio;

  • Interleucina-6 (IL-6);

  • TNF-alfa (fator de necrose tumoral alfa).


Tais marcadores estão associados a inflamação endotelial e instabilidade de placas ateromatosas. A inflamação de baixo grau, mantida ao longo dos anos, compromete a função vascular, propiciando a ocorrência de eventos isquêmicos mesmo em indivíduos sem obstruções coronárias importantes.

A AHA já inclui o estresse emocional e a ansiedade como fatores não tradicionais de risco cardiovascular.


Variabilidade da frequência cardíaca e disfunção autonômica

Outro elo importante entre ansiedade e infarto é a disfunção autonômica. Indivíduos ansiosos apresentam:

  • Redução da variabilidade da frequência cardíaca (HRV);

  • Predomínio do sistema simpático sobre o parassimpático;

  • Maior risco de taquiarritmias e espasmos coronarianos.


A baixa variabilidade da frequência cardíaca é um marcador de mau prognóstico em diversas doenças cardiovasculares, incluindo insuficiência cardíaca e infarto.


A ponte comportamental

Além da via bioquímica, a ansiedade também contribui indiretamente para o aumento do risco cardíaco por meio de comportamentos prejudiciais:

  • Tabagismo como forma de alívio imediato;

  • Sedentarismo;

  • Alimentação desregulada, rica em carboidratos simples e gorduras saturadas;

  • Uso excessivo de álcool ou substâncias ilícitas;

  • Privação de sono crônica.


Todos esses fatores atuam de maneira sinérgica, acelerando a degeneração do sistema cardiovascular.


Síndrome de Takotsubo: o infarto emocional

A chamada “síndrome do coração partido”, ou cardiomiopatia de Takotsubo, é um exemplo clínico emblemático de como uma emoção intensa pode causar disfunção cardíaca aguda. Embora reversível na maioria dos casos, pode simular um infarto e evoluir com complicações graves.

Atinge preferencialmente mulheres na pós-menopausa e está associada a eventos de forte carga emocional, como perdas, traumas ou ansiedade extrema.


Saúde mental como pilar da cardiologia moderna

Tanto a AHA quanto a ESC recomendam que a avaliação da saúde mental faça parte do cuidado integral ao paciente cardiológico. Essa recomendação é sustentada por evidências consistentes de que:

  • A presença de ansiedade após um infarto aumenta em até 3 vezes o risco de um segundo evento;

  • Pacientes com ansiedade têm menor adesão a tratamentos, maior taxa de abandono medicamentoso e piores resultados clínicos;

  • O uso de psicoterapia cognitivo-comportamental em pacientes cardiopatas reduz hospitalizações e melhora a qualidade de vida.


A APA, em consonância, recomenda que pacientes com fatores de risco cardiovascular sejam avaliados para sintomas ansiosos, especialmente aqueles com histórico de infarto ou angina.


Prevenção e tratamento integrativo

A prevenção da ansiedade e seus efeitos cardiovasculares exige uma abordagem integrada, que combine:

Saúde mental:

  • Avaliação psicológica e psiquiátrica;

  • Terapias baseadas em evidências (TCC, mindfulness);

  • Manejo de eventos traumáticos ou históricos de ansiedade persistente.


Saúde cardiovascular:

  • Monitoramento de pressão, colesterol, glicemia e função endotelial;

  • Uso criterioso de betabloqueadores ou ansiolíticos, quando necessário;

  • Envolvimento da equipe multidisciplinar.


Estilo de vida:

  • Atividade física regular;

  • Alimentação cardioprotetora;

  • Sono de qualidade;

  • Redução de estimulantes (cafeína, álcool em excesso);

  • Práticas como meditação, oração, respiração consciente.


Em resumo:

  • Existe uma ponte bioquímica clara e documentada entre ansiedade crônica e doenças cardiovasculares, sobretudo o infarto;

  • A ativação contínua do sistema simpático, o aumento da inflamação e as alterações hormonais colocam o coração sob ameaça silenciosa;

  • O cuidado com a saúde mental deve ser considerado parte do cuidado cardiológico;

  • A prevenção envolve abordagem multidisciplinar e centrada na pessoa;

  • Tratar a ansiedade é, também, proteger o coração.

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© 2019 por Dra Géssica Magalhães. 

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