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Compulsão por jogos

  • Foto do escritor: Géssica Magalhães
    Géssica Magalhães
  • 12 de out.
  • 4 min de leitura
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A prática de jogos de azar ou apostas, embora muitas vezes associada ao entretenimento, pode se tornar um transtorno psiquiátrico grave e incapacitante. A compulsão em jogos, também conhecida como jogo patológico ou transtorno do jogo, é caracterizada pela necessidade incontrolável de continuar jogando, mesmo diante de perdas financeiras, prejuízos sociais, conflitos familiares ou impactos emocionais.

Trata-se de uma condição reconhecida pelos principais manuais diagnósticos internacionais, como o DSM-5 e a CID-11, que classifica o comportamento como parte dos distúrbios do controle dos impulsos.

Ao contrário do que se possa imaginar, a compulsão em jogos não está restrita a cassinos ou loterias tradicionais. Hoje, com o avanço da tecnologia e a expansão dos jogos online, o problema se manifesta em múltiplos contextos — desde apostas esportivas e roletas digitais até jogos eletrônicos com mecanismos de recompensa intermitente. O acesso fácil, rápido e constante potencializa o risco de dependência.


Características do comportamento compulsivo

O jogador compulsivo apresenta padrões semelhantes aos observados em outras formas de dependência, como o vício em substâncias psicoativas. O comportamento se torna progressivamente mais frequente, intenso e disfuncional. Alguns sinais clássicos incluem:

  • Preocupação constante com jogos e apostas;

  • Necessidade de aumentar os valores apostados para obter a mesma excitação (tolerância);

  • Tentativas frustradas de parar ou reduzir a atividade;

  • Irritabilidade, inquietação ou angústia quando não está jogando;

  • Mentiras para encobrir o envolvimento com jogos;

  • Comprometimento de relacionamentos, emprego ou estudos;

  • Uso de empréstimos, vendas de bens ou práticas ilegais para sustentar o hábito.


Com o tempo, a pessoa passa a jogar não mais por prazer, mas para aliviar tensão, ansiedade, culpa ou vazio emocional — um ciclo perigoso e autodestrutivo.


Fatores de risco

A origem da compulsão em jogos é multifatorial. Diversas variáveis contribuem para o desenvolvimento do transtorno, incluindo aspectos biológicos, psicológicos e ambientais. Entre os principais fatores de risco, destacam-se:

  • Histórico familiar de dependência: há uma predisposição genética e comportamental importante.

  • Doenças psiquiátricas associadas: depressão, transtorno bipolar, transtornos de ansiedade e abuso de substâncias frequentemente coexistem.

  • Impulsividade e busca de sensações: indivíduos com perfis impulsivos estão mais suscetíveis.

  • Fatores socioeconômicos: desemprego, dificuldades financeiras ou ambientes sociais que incentivam o jogo aumentam a vulnerabilidade.

  • Exposição precoce aos jogos: adolescentes e jovens adultos representam um grupo de alto risco.


É fundamental reconhecer que qualquer pessoa, independentemente de classe social, idade ou formação, pode desenvolver o transtorno, especialmente quando exposta de forma crônica a ambientes ou situações que reforçam o comportamento aditivo.


Impactos emocionais, sociais e financeiros

A compulsão em jogos compromete diversas esferas da vida. No campo emocional, os sentimentos de vergonha, culpa, desesperança e isolamento são recorrentes. Muitos pacientes desenvolvem quadros depressivos graves e pensamentos suicidas.


Do ponto de vista social, o distanciamento de amigos e familiares é comum. As mentiras constantes, a quebra de confiança e os prejuízos materiais minam os vínculos interpessoais. A família sofre diretamente com a instabilidade emocional e financeira do indivíduo afetado.

Financeiramente, o quadro pode ser devastador. Dívidas acumuladas, falência pessoal, perda de patrimônio, envolvimento com agiotas e inadimplência generalizada são consequências frequentes. Em casos extremos, o jogador compulsivo pode recorrer a fraudes ou furtos para sustentar o vício.


Diagnóstico clínico

O diagnóstico da compulsão em jogos é essencialmente clínico, realizado por psiquiatras ou psicólogos com base em critérios estabelecidos. Para que o transtorno seja confirmado, é necessário observar um padrão recorrente e persistente de comportamento disfuncional relacionado aos jogos, com duração mínima de 12 meses.

A avaliação envolve a análise de sintomas, histórico comportamental, contexto familiar e presença de comorbidades. Instrumentos como o Questionário de Avaliação do Jogo Patológico (Gambling Severity Index) podem auxiliar na mensuração da gravidade do quadro.

Muitos pacientes só chegam ao atendimento especializado após crises agudas, como tentativas de suicídio, ruína financeira ou colapsos familiares. Por isso, a detecção precoce e o encaminhamento correto são fundamentais para minimizar os danos e aumentar as chances de recuperação.


Tratamento e abordagens terapêuticas

O tratamento da compulsão em jogos deve ser multidisciplinar, personalizado e baseado em evidências. Não há uma única estratégia eficaz para todos os casos. As abordagens mais utilizadas incluem:

1. Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC): Considerada o padrão-ouro no manejo do transtorno, a TCC ajuda o paciente a identificar pensamentos disfuncionais, corrigir distorções cognitivas, desenvolver estratégias de enfrentamento e prevenir recaídas. Técnicas como reestruturação cognitiva, controle de estímulos e resolução de problemas são frequentemente empregadas.


2. Grupos de apoio: Organizações como Jogadores Anônimos (JA) oferecem suporte por meio de encontros presenciais ou online. A partilha de experiências e a escuta empática são recursos poderosos na construção da sobriedade emocional.


3. Psicoterapia individual e familiar: Muitos pacientes apresentam conflitos interpessoais, traumas não elaborados e baixa autoestima. A psicoterapia auxilia na elaboração desses conteúdos e no fortalecimento da rede de apoio.


4. Medicação: Embora não exista um fármaco específico para o transtorno, antidepressivos, estabilizadores de humor e antagonistas opiáceos têm sido utilizados com resultados promissores, especialmente nos casos com comorbidades associadas.


5. Controle ambiental e financeiro: Bloqueio de acesso a sites de apostas, limitação de crédito, acompanhamento financeiro por terceiros confiáveis e afastamento de locais de risco são medidas práticas e eficazes para proteger o paciente durante o processo de reabilitação.


A adesão ao tratamento depende, em grande parte, do reconhecimento do problema pelo próprio indivíduo. A motivação interna e o desejo genuíno de mudança são alicerces para o sucesso terapêutico.


Prevenção e conscientização

Prevenir a compulsão em jogos envolve, antes de tudo, educação e vigilância. É necessário promover campanhas informativas que desmistifiquem o jogo como diversão inofensiva e alertem sobre os riscos do comportamento compulsivo.

Nas escolas, a inclusão do tema nas disciplinas de saúde mental pode ajudar os jovens a desenvolverem senso crítico e autocontrole. Na sociedade, é fundamental regulamentar a publicidade de jogos e apostas, protegendo grupos vulneráveis e evitando a glamorização do comportamento.

Empresas que operam plataformas de apostas também devem adotar políticas de jogo responsável, com mecanismos de autolimitação, alertas de uso excessivo e bloqueio voluntário de contas.


Considerações finais

A compulsão em jogos é um distúrbio sério, que ultrapassa o campo do entretenimento e adentra a seara da saúde mental. Sua progressão silenciosa, aliada ao alto potencial de dano pessoal, exige que profissionais de saúde, educadores, legisladores e familiares estejam atentos aos sinais e preparados para agir com empatia e firmeza.

Recuperar-se do jogo compulsivo é possível. Com apoio, tratamento adequado e estratégias de prevenção bem estruturadas, é possível retomar o controle da própria vida, reconstruir relacionamentos e restaurar a dignidade emocional e financeira.


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© 2019 por Dra Géssica Magalhães. 

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